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As Barrancas de Miguel Bicca

Rafael Vigna Editado em 02/05/2019

As Barrancas de Miguel Bicca

(*) Foto de Marcelo Vieira

Por Rafael Vigna

Entrevista da Edição Impressa do Jornal Folha de São Borja deste sábado, dia 27 de Abril.

Muito já foi dito e escrito em dissertações de mestrado e artigos sociológicos sobre as peculiaridades do Festival da Barranca. No entanto, a manifestação artística idealizada por Apparício Silva Rillo e José Bicca, em 1972, ainda desperta curiosidade. Quase meio século depois, o evento, promovido pelo Grupo Amador de Arte Os Angüeras, que encerrou a sua 48ª edição, na madrugada do domingo passado, ainda cultiva o caráter “inusitado” como essência. Nas palavras do próprio Rillo, a Barranca nasceu contrariando o racionalismo, assim, meio por acaso, durante uma pescaria. Talvez, por isso, decifrá-la, sempre tenha sido uma tarefa difícil. É que parece haver uma Barranca para cada Barranqueiro.

Numa “charla” espontânea, como praticamente tudo que acontece a cada Semana Santa, na Beira do Rio Uruguai, Miguel Bicca relembra um pouco desta história e fala sobre a sua própria Barranca. Testemunha ocular dos acontecimentos, o cantor e compositor, é a memória viva das transformações ao longo do tempo. Fundador do Festival na década de 1970, costuma manter ventiladas as reminiscências deste que é considerado por ele, ao lado da Califórnia da Canção Nativa, um marco na história da música regional e da cultura do Rio Grande do Sul.

O festival também foi responsável por moldar uma fase importante da carreira do artista e do homem Miguel Bicca. Das inúmeras parcerias nascidas na Costa do Rio, ele guarda com saudade o contato com Caeco Batista e Cesar Lindemeyer. Aos 77 anos, continua ativo e inquieto. Pretende lançar dois discos – um de causos e outro com canções inéditas. Reportório e vigor não lhe faltam. Em entrevista à Folha de São Borja, na manhã do domingo de Páscoa deste 2019, enquanto o acampamento se desmontava, Miguel Bicca falou sobre música, arte, planos e as variações da Barranca com o passar dos anos. Confira:

Folha de São Borja – Existia, em 1972, a pretensão de que a Barranca se tornasse essa manifestação artística singular como a conhecemos hoje? Que tipo de influência o festival e o Rillo tiveram na sua trajetória musical?

Miguel Bicca - Sou um dos fundadores, o único vivo. Não tínhamos noção e nem a pretensão de que isso acontecesse. Naquela primeira Barranca, que era só mais uma das tantas pescarias, eu estava lá. A Barranca começou como uma pescaria, mas nunca houve a preocupação com a pesca. Não se queria perder a roda de música pra ficar sozinho pescando. Naquele ano, fiquei só dois dias. Eu lidava com gado e tocava a estância do meu sogro. Tinha compromisso e fui embora. Pois neste dia, o Nico (Antônio Augusto Fagundes) e o Rillo (Apparício Silva) resolveram fazer o concurso. Foram poucas músicas. O Nico ganhou. A segunda eu fiquei e ganhei com “Eu, o Rio e a Lua”. Ai fui me entusiasmando. Foi quando, de fato, eu comecei. Já tinha feito o “Vira Mato” e o Rillo era meu amigo, meu irmão, meu compadre. Ele começou a me incentivar. Então, eu passei a escrever música e mandar pra ele. Tem uma história interessante nisso tudo. A partir deste contato mais artístico com o Rillo, eu comecei a inscrever músicas em festivais. E me disseram, muito tempo depois, que quando o Rillo não gostava muito de uma letra dele, mandava pra mim. Eu não sabia disso. Mas quando soube, achei interessante. Sendo verdade, ou não, é algo de que me orgulho, porque depois que ele morreu eu ganhei oito festivais. Ou seja, isso significa que de alguma forma, ele continua me mandando as suas letras (risos). Que coisa boa, isso! O Rillo não escrevia nada sem pesquisar. Ele não era um homem campeiro, mas sim um estudioso. Não era raro que ele me ligasse pra fazer algum tipo de consulta. Um dia, por volta das 4h da madrugada, no tempo em que os telefones eram à manivela e ficavam grudados na parede, a minha esposa (Eloni Martini) atendeu e me chamou. Era o Rillo do outro lado, me perguntando o que era a “Cedeira do Buçal” do Cavalo. Expliquei, às 4h da manhã, de um dia qualquer. Ele agradeceu e desligou. Conto isso, pra dizer que ele não escrevia nada que não tivesse certeza ou pesquisasse. Essa era uma das características do Rillo. Hoje em dia, mesmo com toda a tecnologia e a facilidade de encontrar fontes, tem muita gente escrevendo sobre a cultura e escrevendo errado. Às vezes nem é por mal, mas o Rillo era preocupado com isso.

Folha – No contexto atual, qual é o papel de um festival nos moldes da Barranca?

Bicca - Na minha avaliação, a música gaúcha se divide em antes e depois da Califórnia da Canção Nativa e do Festival da Barranca. Eu comecei a cantar com meu irmão Zé Bicca, com 12 ou 13 anos. Quando aprendemos a dedilhar um violão, cantávamos músicas que entravam pelo Litoral. Aqui, no Rio Grande do Sul, era Pedro Raimundo (acordeonista de Santa Catarina que esteve em evidência entre 1940 e 1950), um pouco mais tarde veio o Conjunto Farroupilha (entre 1950 e 1960), que era mais sofisticado e folclórico. Ainda assim, não se falava em referências do campo, do cavalo, dos símbolos que hoje são tão naturais na nossa cultura. O Teixeirinha, por exemplo, tem uma música que fala que o cavalo não-domado ficou “Redomão” (cavalo recém domado), quando seria o contrário. Uma das contribuições da Barranca e da Califórnia foi a correção deste aspecto. São festivais distintos que nasceram no mesmo ano. A primeira música da primeira Califórnia fomos nós quem cantamos, com Os Angüeras. Fizemos amizade com eles. Tanto que o único festival que eles aceitam as músicas é o da Barranca, porque permanecem consideradas inéditas. Existe também o que podemos chamar de “filhos” da Barranca. O primeiro é os Costeiros. Eles não negam e se orgulham disso. Há uma infinidade de outros festivais de beira de Rio com essa mesma intenção, que é a de confraternizar e fazer música. Daqui surgiram incontáveis cantores, músicos e parcerias. Isso aqui é uma coisa diferente. Porque não viemos só para cantar e fazer música. Viemos para curtir. Principalmente, nós, os mais antigos. Aqueles que voltam depois de algum tempo.

Folha – Além do Rillo, o senhor teve muitas parcerias que podem ser atribuídas à Barranca? De que maneira isso contribuiu com a sua própria formação artística?

Bicca - A minha primeira parceria de letra foi “Barco Perdido”, com o Rillo. O Nico Fagundes costumava dizer que eu inaugurei a parceria de letras. Depois do Rillo fiz várias com o Caeco Batista. Antes do Caeco, alguma coisa com o Martin Barbosa. Musicalmente, as mais recorrentes foram com o Odemar Gerhardt, aqui mesmo na Barranca. Não existia isso. Sempre se fazia letra e música. Eu nunca tive muito recurso de violão. Usei mais para compor, mas acabei me envolvendo com outras coisas e o instrumento musical demanda tempo, pede que se esteja sempre em cima. É um exercício diário. Sempre digo isso pra gurizada que está começando. A música é isso. Ou se faz ela assim, de beira de fogo, como a gente chama, ou se enfrenta o desafio de ser profissional. Eu não me considero cantor. Eu cantei em grupo vocal como Os Angüeras. Quando comecei a fazer carreira solo, eu me tornei um “Cantador de Galpão”. Cantor profissional é outra coisa. É um João de Almeida Neto, um Wilson Paim, um Cesar Lindemeyer. Cito alguns, mas tem muito mais gente. Eu me considero um cantador de galpão, de roda de fogo, de tertúlias. É assim que me sinto mais à vontade. E, as vezes, este tipo de opinião nos marca e acompanha a nossa trajetória. Eu tive uma fase da carreira com influência total da Barranca. Outra, depois, quando fui pra Santa Maria e encontrei o Sabani Felipe de Souza, meu parceiro em três discos. Gente competente, baita músico e grande amigo. Segundo o Nico Fagundes, eu também sou o compositor que mais escreveu músicas sobre a beira do Rio. Levantamento dele, que nunca me mostrou, mas também não questionei os métodos (risos). O Rillo também dizia que se não tiver Cavalo, Rio ou Mulher, pode ter certeza que a música não é minha, não fui eu que compus (gargalhadas). É que são três coisas importantíssimas!

Folha – Há um constante processo de renovação na música. Isso é bastante presente no Festival da Barranca. Por outro lado, as influências são outras, diferentes das que surgiram com a sua geração e que fundaram essa estética da música regional de hoje. Como o senhor percebe essa evolução e a preservação destes elementos?

Bicca - Eu vejo sempre a influência cultural da Região. No Rio Grande do Sul, houve muita música de duplas, como é o sertanejo hoje em dia. Era um sertanejo nosso, que existiu muito por aqui. Inclusive, tem uma dupla de Cachoeira do Sul chamada Xará e Timbaúva. Cantavam músicas do Estado com estilo sertanejo. Eles sofreram a influência de alguém. A nossa música, aqui, da Costa do Rio Uruguai, sofre a influência da Argentina, da província de Corrientes. Às vezes, as pessoas não se dão conta. Quando cheguei em São Borja, em 1961, o que eu escutava era Los Chalchaleros, Atahualpa Yupanqui, Jorge Cafrune e por ai se vai. Esta era a nossa influência, que foi também a influência do Noel Guarany. A música é assim. É influência. O Zé Bicca e eu, a primeira música que cantamos, chamava-se “Vagomestre” (responsável pela alimentação de uma tropa). Era uma música que entrou por Rio Grande, pela região portuária. Ela dizia assim: “Nasci assim como nasce qualquer vagomestre. Não tive, nem soube, nem sei quem foram meus pais. Me criei nas tavernas, ao som das garrafas, pescando de linha no Rio Uruguai”. Ou seja, não tinha cavalo, campo, ou outro símbolo. Tínhamos um primo mais velho, Chamado Celinho. Foi quem entusiasmou o Zé a tocar. Tocava num violão de corda de aço, com cravelha de pau. Ringia pra afinar. A dedeira era uma escova de dente. O Zé aprendeu com ele, que tocava nos galpões da região de Encruzilhada do Sul. Isso também é influência. Na minha opinião, tudo é influência. Isso me faz lembrar do termo Nativismo. Não concordo que seja música nativa. É música regional do Rio Grande do Sul. Tem influência argentina e não tem problema nenhum nisso. Agora, nós não temos nada de nativo. Nem o “Bugio” (ritmo gaúcho de compasso binário) é provado que seja nativo, de fato. É aquele “Fa, Fa, Fa, Fu, Fu, Fu” (imitando o som da gaita). É um ritmo campeirão de gaiteiros com pouco recurso. É lindo, mas não é comprovado que seja nosso. Então, nós somos um país e uma região que é forjada pelas suas influências de imigração, desde que abriram as portas dos presídios de Portugal e da Espanha e descarregaram este bando do ‘lôco’ aqui (gargalhadas).

Folha – A Barranca, que prima pela espontaneidade, também gera um processo de criação diferente. Depois de receber o tema é preciso escrever, musicar e...

Bicca – Isso é interessante. Com o Caeco, nós recebíamos o tema na Sexta-feira. Ele ia embora pra posar em casa. Eu ficava. No outro dia, pela manhã, nos encontrávamos. Ele trazia alguma coisa escrita e eu também. Olhávamos se mais ou menos batia... e sempre batia! Não lembro de uma vez que não tenha fechado. Aí era só encaixar os versos. Nos sentávamos numa barraca e terminávamos. Depois dávamos pro Odemar (Gerhardt), pro Cesinha (Lindemeyer) e ganhamos algumas vezes assim.

Folha – Neste contexto musical, teve alguma Barranca mais marcante?

Bicca – A mais marcante foi com o Luiz Bastos, nos 300 anos de São Borja, quando o Festival da Barranca foi apresentado na Praça XV de Novembro. O tema era “Campeando Origens”. Eu fiz a letra, o Luiz Bastos a música e ganhamos o Festival com “Indagações”. Naquela ocasião ganhamos do Nico Fagundes. Ele ficou em segundo com “Origens”, que até hoje é a música tema do Galpão Crioulo. Esta é a Barranca que, musicalmente, mais me recordo. Na Barranca, é o único festival que não dá pra se queixar de jurado. Em tese, o Nico teria mais influência do qualquer um na Barranca. E, mesmo assim, ganhamos. Em 1982, no Festival Uma Canção para São Borja, realizado no Centro Nativista Boitatá, ganhou o Jacaré (Sérgio Metz) que naquela época era um guri, recém começando. Eu fiquei em segundo. Graças a Deus, isso tudo vai ficar para a juventude. Já influenciei muita gente. E tudo gira em torno disso. O pouco que sei sobre o campo aprendi com o meu pai, com os peões da fazenda do meu avô. A vida é esse redemoinho que gira em torno do que se vê e a música é algo tão importante e simples.

Folha – Como anda a sua produção atualmente? Podemos esperar coisas novas?

Bicca – Sempre me cobram por um disco novo. Tenho repertório, patrocinadores e o Borghetti (Renato) quer que o lançamento seja na Fábrica de Gaiteiros. Se Deus quiser vai acontecer. Além disso, tenho um disco de causos. Os meus são os tradicionais, os antigos, os de galpão e do Folclore. Sempre tem alguém que dá continuidade a esta tradição oral. É muito difícil, ainda hoje, encontrar uma fazenda que não tenha um cara que mantenha isso vivo e seja o contador de causo. Muitos mentindo, inclusive. Até por isso o nome do disco de causos vai ser “Queimando o campo com chuva”. É que no meu tempo de guri, se usava essa expressão. Quando se avistava um mentiroso de gabarito chegando de longe, se apontava o dedo e dizia “Lá vem o queimador de campo”. Eu acredito que temos de deixar alguma coisa. O Zé e o Rillo nos deixaram muita coisa. Quero deixar a minha contribuição também.

Folha – Mas já deixou...

Bicca – Cada qual, com seu cada qual, como se diz. Mas é essa a nossa cruzada por esse mundão velho. Tenho dois caras que são parceiros. O Juarez Londero e o Alvimar Klaus. Gostam do meu trabalho e me cobram o disco. Quero fazer isso aqui em São Borja, com o Serginho Souza de maestro. Enquanto isso, ando forcejando pra não virar tema da Barranca (risos).

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